OS NOMES
Atualizado: 15 de set. de 2020
Quando eu era estudante na Austrália, os colegas de convívio, tais como Mahfuz (Bangladesh), Kalfau (Vanuatu), Kuike (Papua Nova Guiné), Komar e Paridh (Camboja), Rhinehart (Palau), Tulga (Mongólia) Mahé (Tonga), Xu Liang (China), Hung (Vietname), Platzdasch (Alemanha), Pramod Aryal (Nepal), Claire Barker e Owen Fincham (Englaterra), Eric Mamajek e Nicole Allen (EUA) e outros decidiram não me tratar por Florentino, que esse nome, segundo eles, não representava a minha origem rácio-continental. A princípio, pensei tratar-se de uma brincadeira, mas o dia-a-dia demonstrou que a conspiração dos colegas não deixava margens de dúvida de que era uma decisão séria. Quiseram que eu lhes oferecesse uma alternativa. Dei-lhes o nome Dick. Recusaram-se também em chamar-me por Dick, que essa palavra, em inglês, tem um significado que não lhes interessava recordar-se dele a todo o momento. Pus à mesa todos os meus nomes para opções. Uns optaram por Tino, do Florentino, e outros, por Kassotche. Os malawianos e zambianos preferiam o nome Mphiri e os meus amigos nigerianos contentaram-se com o Kassotche. Masoelo (leia-se Massoelo) implicou-se comigo por causa da grafia do Kassotche. Para ele, devia ser Kasoche. Ele tinha as suas razões, mas escrevendo-se como ele queria, os meus compatriotas moçambicanos, com a mentalidade portuguesa nos miolos, nunca iriam ler o meu nome baseando-se na grafia bantu, e chamar-me-iam ‘Cazoche’. E o mesmo malawiano afirmou categoricamente que o meu Mphiri estava mal escrito, que o M estava a mais. Mais uma vez dei-lhe razão, mas fiz-lhe ver que, tirando o M, corria-se o risco de eu ser chamado Firi, com a mania inglesa de que ph na maior dos casos tem o som de f. Pena, eles se esqueciam de que os nomes obedecem contextos e querenças! Consegui convencê-los sobre a grafia, mas nunca me perdoaram em continuar a ser chamado Florentino, vinte e tal anos depois da independência.
Anos depois, viria a trabalhar num país africano, onde a questão dos nomes voltou à ribalta. Os meus fellows africanos não consentiram que pretos vindos de Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tome e Príncipe e Guiné-Bissau continuassem atados aos nomes portugueses, ou seja, latinos, depois de tantos anos de independência. Reconheceram que a colonização portuguesa tivesse sido diferente da Inglesa e Francesa, mas que as novas gerações continuassem a dar nomes ‘latinos’ aos seus filhos em pleno século vinte e um, qualquer coisa estava errada na nossa africanidade. Para sustentar as suas teses, eles se perguntavam se alguma vez já se ouviu um nome puramente africano com um branco holandês, finlandês, russo, português, americano, e muitos outros, mesmo apesar de muitos anos de convívio com a África!?
A colonização portuguesa foi tão violenta, que chegou a amputar-nos até nos nomes, deixando gerações inteiras sem raízes por onde se recorrer. E é assim que é normal apanhar um negro da minha aldeia a chamar-se António Inácio António Barbosa; Manuel Pinheiro de Andrade Pires, Inácio Sarmento das Dores Mandioca, Sabonete Miguel, Ricardo da Graça Sofrimento, Januário da Cruz Bandeira, Maria Imaculada Inácio, Maria da Cruz Saúde e muitos outros sons que se confundem com os cooperantes vindos da península ibérica. E a mesma doença de imitação de nomes alheios carregamos para os nossos filhos. Se quisermos que a globalização seja um processo recíproco, cabe-nos a responsabilidade de nele participar com o nosso distintivo, as nossas peculiaridades, a começar pelos nomes, culturas e maneiras de ser-estar. Podemos adquirir novos hábitos, novas roupagens mas não nos devemos diluir em coisacas que só nos ‘agridem’ o imaginário africano. Que comamos cozido português, falemos russo-francês–alemão–inglês-e outras línguas ditas internacionais, mas que isso não nos tire a nossa africanidade, que ela é inegociável.
Uma alerta: No dia em que baptizei a minha filha com um nome típico sena - Wa-mwai, significando ‘de+sorte’ (uma pessoa de (com) sorte), meio mundo virou-se contra mim, pondo em causa a decisão de um pai esclarecido e globalizado.
De todas as ignorâncias, a pior é a de um indivíduo que não sabe das suas origens. Somos africanos, sim, mas como é que nos posicionamos perante os ‘African Values?
Aceito que me chamem nomes portugueses, ingleses, mas aos meus netos, nem pensar! Há que romper com essa mentalidade escrava aos outros.