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SEM TI

SEM TI (RECORDAÇÃO DOIS)


Amar é dar, derramar-me num vaso que nada retém e sou um fio de cana por onde circulam ventos e marés. Amar é aspirar as forças generosas que me rodeiam, o sol e os lumes, as fontes ubérrimas que vêm do fundo e do alto, água e ar, e derramá-las no corpo irmão, no cadinho que tudo guarda e transforma para que nada se perca e haja um equilíbrio perfeito entre o mesmo e o outro que tu iluminas. Dar tudo ao outro, dar-lhe tanta verdade quanta ele possa suportar, e mais e mais; obrigar o outro a elevar-se a um grau superior de eminência, fulguração, mas não tanto que o fira ou destrua em overdose que o leve a romper o contrato — o difícil equilíbrio dos amantes! Amar é raro porque poucos somos capazes de respirar as vastas planícies com a metade do seu pulmão; e amar é raro porque poucos aceitam a presença do seu gémeo, a boca insaciável de um irmão que todos os dias o vento esculpe e destrói.

Casimiro de Brito, in 'Arte da Respiração'


AMOR LOUCO. Se me perguntares quando, como, onde é que teve início este amor, esta paixão, que ainda me fornica as entranhas, não saberei te dizer, N’tsai. Não que eu não queira, é que não me vem à memória nenhuma data, lugar, momento fixo-certos capazes de satisfazer a tua preocupação. Se foi de repente(?), pode ser que sim, mas o mais lógico é que fomos sendo, passo a passo, novidade um para o outro. Rebentamos barreiras. Vencemos obstáculos. Galgamos sonhos. Atravessamos emoções fúteis. Quando estávamos no cume da paixão, querias que não nos encontrássemos mais. Sei que tinhas tuas razões, N’tsai. Mas porquê tinhas a coragem de te considerares inocente se bem que o mundo que se nos abria não era só da minha autoria?

– Saopa, isso é capaz de não dar certo. Vamos parar com os nossos frequentes encontros!

– Será solução? E as toneladas de afecção que acumulei por tua causa, onde é que hei-de as depositar-enterrar, N’tsai?

– Oh, Saopa, não sei se tu não estás a ver o perigo. Essa ligação não tem jeito. Não, não nos podemos enganar, que esta relação não tem futuro.

– Ao menos, ela tem presente.

– Valerá a pena o presente sem a noção do futuro?

E eu, louco por esse amor louco, punha-me a recitar versos mais líricos com os quais te esquecias de todos os perigos que fazias alusão e, como quem não tinha outra oportunidade, descansavas a tua cabeça no meu peito. Com a respiração ofegante, punhas-te a olhar para mim como se eu fosse o culpado de teres nascida mulher. E falávamos de coisas banais que não tinham a ver com a realidade quotidiana dos nossos sonhos, que era só uma maneira de sairmos dos lugares comuns de todos os pares namorados. Tu gostavas muito de apontar os meus defeitos, N’tsai. Não me poupavas e acusavas-me de ser um tipo fraco, só porque não conseguia passar muito tempo sem te ver, como se tu fosses forte e conseguisses evitar-me(!); ora, que eu era mentiroso e que não te amava de verdade, como se tudo o que eu fazia-e-dizia fosse apenas representação teatral(!); enfim, uma série de acusações. Nunca levei isso à sério, que se assim o fizesse corria o risco de me aborrecer constantemente contigo.

Numa terça-feira de Setembro, quando íamos nos separar, tentei provocar-te, provando que nem tudo o que dizias era o que sentias:

– N’tsai, pensando bem sobre a tua proposta doutro dia, agora entendo e aceito que acabemos, de facto, com os nossos encontros em série e frequentes. Entremos de férias passionais.

– Espera aí! Estás mesmo à sério?

- Sim, estou. A tua família não me atura e, especialmente a tua mãe, não me vê com bons olhos. Que sonhos podemos semear-construir-projectar juntos, se uma das pessoas que nos deviam apoiar apunhala-me dia e noite?

- Ela não te apunhala, é a maneira dela de te admirar.

- A ponto de me acusar que sou forasteiro?!

Não estavas, N’tsai, preparada para ouvir de mim aquilo e começaste a chorar, enquanto isso, a violência dos teus braços era descarregada no meu corpo, como se o bater pudesse acalmar qualquer coisa em ti. Tirei o lenço, mas tu não me deixaste limpar as tuas lágrimas. Secaste-as com a ponta dos teus dedinhos. Afinal, só sabias propor coisas impossíveis, sabendo que o grau afectivo a que tínhamos atingido não era para tantas fintas-fingimentos!? Tremeste. Mais lágrimas jorraram dos teus olhos. Ficamos lá na escuridão da rua Friedrick Engels, agachados, a roçarmo-nos, em jeito de consolação. Afinal, o amor é tão mau assim, a ponto de provocar dores, lágrimas?

- Saopa, agora sei – nós nos fazemos sofrer.

– Fazemo-nos, ou me fazes sofrer?!

– Não, Saopa, eu também sofro com as minhas próprias decisões-loucuras-indecisões. E sofro mais quando penso que me amas assim tanto, e eu não sei corresponder a este amor puro e sincero. Oh, Saopa, tu sofres, eu sofro, nós sofremos.

– Meti-me num mundo que não me é fácil de sair. Vezes penso que fui um bobo em ter confessado o meu amor por ti, N’tsai, enquanto devia manter-me calado e quieto. Sofreria, sim, mas amar-te-ia em silêncio e, assim, ninguém saberia o que ia no meu interior.

– Não te culpes deste jeito, Saopa. Eu pensei que podia conseguir ficar sem ti, mas na realidade, tu já és parte de mim, que não consigo imaginar-te longe de tudo o que estamos passando. Quando falo em separação, é apenas uma maneira de pôr um pouco de piripiri na nossa relação.

Começaste, finalmente, a compreender, N’tsai, que o amor é uma casa especial, de pessoas especiais, e que a nossa PAIXÃO era um sentimento que tinha surgido com muita força na estrutura emocional de cada um de nós, a ponto de nos levar a uma entrega total de corpo e alma. Tu eras o meu objecto e eu era também objecto dessa incandescente paixão. A tua confissão de que sentias uma intensidade tão arrebatadora dentro dos teus nervos foi como que o plagiar exactamente do que me ia na alma – um sentimento semelhante, tão profundo e formidável que tinha a ti como o único objecto de adoração. Essa paixão vivida e sentida roubava-nos o tempo de estudos, de lazer, de conversas com os amigos, chegando até de nos roubar o tempo de comer, de respirar, de dormir, e mesmo de pensar em outras coisas diferentes de NÓS.

Haverá outra coisa, diferente de paixão, que seja melhor e tão sublime para um Homem?! E embora ela provocasse reviravoltas de sentimentos, aprendemos da nossa paixão que podemos, consoante os estados de emoção, acordar felizes, pensativos, nostálgicos, saudosos - momentos esses fundamentais e imprescindíveis para a saúde passio-mental de todo o ser humano.

Percorremos o passado. Falamos do dia em que fomos juntos ao Teatro Avenida. Lembras-te daquelas duas fulanas que estavam sentadas nas cadeiras atrás de nós? Não quis dizer-te na altura que eu as conhecia, mas pelo jeito delas de olhar para mim, acho, qualquer suspeita tiveste. Eram colegas da Mafulauzi. E ao verem-me contigo, elas tiveram a certeza de que eu já não tinha mais nada a ver com a amiga delas. Numa primeira fase, quando me separei da Mafulauzi, elas me condenaram, mas quando lhes expliquei os motivos que me levaram a tomar uma decisão dessas, entenderam e fizeram da minha justificação uma lição da vida.

Há amores que nos sufocam, e a Mafulauzi foi desses amores tristes-possessivos que me lembram das facetas nocivas das paixões humanas. Se tivesse que encontrar palavras para adjectivar a nossa relação, eu diria que o amor da Mafulauzi para comigo era, até certo ponto, a soma de amores: paranóico, vigilante, obsessivo, compulsivo, esquizofrênico e egocêntrico. Numa única palavra, classificá-lo-ia de um amor instável e sem portas para o futuro, ou mesmo para o presente, vivendo de instantes conturbados. Mafulauzi, em pessoa, encarnava todos esses tipos de amores prejudiciais. E por ironia do destino, só depois de me separar dela, é que a sociedade foi capaz de reconhecer os excessos da minha ex-namorada.

Emocionadas por me verem contigo, e aproveitando-se da tua ida a casa de banho, depois do espetáculo, as amigas da Mafulauzi, vieram felicitar-me e disseram:

- Esperamos que a tua nova conquista seja diferente da nossa amiga. Ela é simplesmente bonita e sedutora. Quando a Mafulauzi souber que estás com uma peça dessas, de alta distinção e que inspira respeito, há-de morrer de ciúmes e inveja.

Depois da sessão do teatro...

Naquele domingo, com toda a franqueza, vieram a concretizar-se os planos dos meus sonhos. Só pelo facto de teres aceite ir comigo ao teatro e teres me esperado mais do que o tempo necessário na esquina próxima ao teu lar de estudantes foram sinais de que eu era uma pessoa muito especial para ti, N’tsai. E as pessoas especiais, como diria a minha amiga Laura de Assunção Márcio, não são pela maneira de ser ou de agir, mas sim pela profundidade com que atingem o coração dos outros. E tu atingiste o meu de um jeito só teu – peculiar-mágico e profundíssimo.

Depois do teatro, fomos andando pela Avenida Samora Machel até desembarcar ao Jardim Tunduru. Procuramos um sítio para nos acomodarmos, percorremos os labirintos do jardim, recordando-me das matas grossas do meu Mutarara distante. Naquela noite, todas as flores estavam semi-murchas, mas há uma que se reavivou mal ouviu as nossas vozes e os nossos passos. Ficaste surpreendida por essa realidade – como é que uma flor pode ganhar vida a partir de um som? – perguntaste-me – e falei-te de plantas misteriosas que falam-ouvem, e outras que comem insectos, formigas, ratazanas, cobrinhas. Foi-te difícil de engolir essa história sobre as plantas. Prometi levar-te, um dia, ao velho N’ghula, um dos melhores feiticeiros de Mutarara, para te abrir os olhos e veres o mundo com outras lentes da sabedoria.

Quando eu era criança, frequentei a casa do velho N´ghula, que era para espiar os segredos da sua ciência. Lembro-me de que, quando houvesse festas naquela casa, a sua esposa cozinhava uma determinada quantidade de comida, que a olho nu, podia calcular-se que pudesse alimentar quatro a sete pessoas, mas na realidade, a pequena porção chegava a saciar barrigudos de um grupo de mais de doze indivíduos. Para além dessa magia, na casa do velho N´ghula nunca se trancava a porta, e coitadinho daquele que se atrevesse a entrar e subtrair alguma coisa(!) – ficava retido até que o dono voltasse donde estivesse. Uma vez, um vizinho do velho foi a sua machamba sem autorização e quis comer bananas. Qual foi o espanto meu(!) – o fulano ficou na posição de arrancar bananas por dois dias, até que um outro vizinho alertou ao velho N`ghula sobre o acontecimento. O infractor foi liberto algum tempo depois, após um tratamento tradicional. Lembro-me que olhaste para mim com uma cara de curiosidade. Querendo ainda atiçar a tua imaginação, contei-te outra história, que eu tinha passado aquando das minhas férias escolares, junto da minha família, depois de longos anos de separação. Chegado lá, minha mãe quis, antes de me sentar, que eu fosse submetido a um bafo tradicional, que era para exorcizar os espíritos maus. Recordo-me que bramei com a velhota, chamando-a de obscurantista e supersticiosa. Vendo-me todo radiante e dono da razão, ela se calou, mas com a dor visível nos seus olhos e no seu semblante de mãe. Dois dias depois da minha chegada, morria na família alargada um tio do quarto grau parantescal. Meus pais levaram-me consigo para estar presente nas cerimónias, e delas aprender a respeitar as nossas tradições.

Houve reunião dos anciãos e, eu, beneficiando-me do meu grau académico, fui convidado a estar presente. Houve quem reclamou, recordando aos mais velhos que eu não passava de um miúdo, mas há quem os calou com uma verdade vidente: “ele está a estudar a magia dos brancos, e precisa de saber da nossa magia também, que é a sua própria magia. Precisamos de alimentar esse miúdo com o nosso saber, que é para evitar que domine o mundo dos outros sem dominar o seu próprio mundo de nascença e vivência.”

Nessa reunião, o conselho de anciãos deliberara que o corpo devia ser enterrado naquele mesmo dia, pelas dezoito, a hora em que as galinhas começam a albergar-se em seus aposentos. A palavra “enterro” era apenas uma expressão simbólica, para significar o acto, mas o corpo do defunto seria vestido, e depois embrulhado num lençol branco, e em seguida, colocado na primeira bifurcação do caminho que levava os habitantes da aldeia ao rio, de onde se catava água para o consumo.

Todos aqueles que tinham assistido o corpo a ser transportado para o lugar de ‘enterro’ não podiam sair da casa do defunto naquela noite. E o conselho dos anciãos era de que as pessoas presentes naquela casa deviam dançar, comer e cantar até que aparecesse o sinal.

Sinal? Que e qual sinal?

Quando eram mais ou menos duas horas da madrugada, APARECEU, do sítio em que o corpo havia sido posto, um vulto que podia ser visto por todos os aldeões e, em menos de sete minutos, um cão de uma raça rara e nunca antes visto na zona juntou-se às pessoas presentes, meteu-se na roda das mulheres e começou a dançar com um estilo característico do falecido. Sentiu-se um calafrio estonteante e, perante essa realidade, os anciãos mandaram parar as batucadas e deram ordens para as pessoas se dispersarem.

Um membro do conselho de anciãos chamou-me e disse:

“A morte é outro estado da vida, meu filho. Sei que na vossa escola, vocês aprendem que quando se morre vai-se para o céu, composto por paraíso e inferno. E partir deste acontecimento de hoje, que viste com os teus olhos, saibas que a morte não é essa viagem que se ensina nas escolas ocidentais. A morte é como se fosse a passagem de água de um estado para o outro – por exemplo, de líquido para gasoso, e esses processos de liquidificação ou gasificação são incontroláveis, a olho nu.”

“Mas a água do estado gasoso pode voltar para o líquido ou o sólido e vice-versa! Será que acontece o mesmo com o Homem e com os dois estados, que é a vida e a morte?”

“Sim e não ao mesmo tempo. Aquilo que vocês consideram morte é apenas a transformação de uma forma de vida para uma outra. O teu tio, por exemplo, deixou de ser pessoa para ser outro ser existencial.”

A morte e a vida. O que nós sabemos de uma e da outra, senão acordar todas as manhãs e viver uma grande incógnita da vida ou da própria morte? Seremos, de facto, esses seres pensantes que somos, ou somos, na real essência, o “outro” que ressuscitou e se transformou naquilo que representamos neste minuto?! Seremos o que pensamos ser, ou somos a encarnação de uma ideia superior posterior à nossa existência?!

Volto ao defunto. No dia seguinte, foi-se ao local onde havia sido colocado o corpo, e só estavam lá as vestes e o lençol. Os credenciados afirmaram que a passagem do espírito de um corpo para outro, e a transformação corporal de uma para a outra forma de vida tinha sido muito doloroso, e essas afirmações eram com base em sinais que só eram visíveis e perceptíveis a eles.

Um dos filhos do defunto, inconformado e intrigado com a morte do pai, foi ao grande curandeiro da zona para procurar saber das causas da mesma, e a leitura do mago foi: a morte tinha sido provocada por alguns membros da própria família, devido a ambições materiais.

O espírito do defunto, ciente das cabalas terreais, quis ainda ficar na terra para se vingar dos seus assassinos, antes de se emigrar para onde vão todos os outros mortos.

Sete semanas depois, o cão inofensivo e carinhoso tornara-se num animal colérico e raivoso, a ponto de atacar uma das anciãs da família, tirando-lhe os olhos e destruindo, com raiva, a parte corporal que fica entre as pernas.

A justiça estava feita. Cá se faz, cá se paga.

- A ser verdade o que me contas, e do pouco conhecimento que tenho das nossas tradições, fico a não saber o que é a morte e o que ela representa, na verdade, na cosmografia africana. Será que as histórias dos espíritos que voltam e se vingam são verídicas ou são apenas contadas de forma a criar-se um ar de misticismo na cabeça dos ouvintes?!

A tua pergunta merecia uma reflexão conjunta, mas antes, lembrei-me do que me havias contado sobre o teu mundo de infância, onde cresceste a ouvir que, em África, em ÉPOCAS RECUADAS, alguns magos africanos tinham o poder de, nos tempos de seca, provocar e fazer parar a chuva; de multiplicar a comida, como Jesus Cristo o fizera no seu tempo; de roubar, através da magia, utilizando ratos e cobras, as colheitas dos outros; de transferir uma dor de um lugar para o outro do mesmo corpo humano; de voar utilizando peneiras e esteiras; de curar doenças crónicas; só para citar algumas façanhas. Ainda me contaste sobre as façanhas da Luta Armada de Libertação Nacional de Moçambique, em que havia soldados anti-balas – desse grupo, havia aqueles que se refugiavam nas suas próprias sombras; os que se transformavam em cobras, árvores, rios ou em coisas invisíveis; os que desviavam as balas como quem enxotasse mosquitos ou moscas; os que faziam com que a arma do adversário, em vez de balas, saísse água-ar-vento; os que transformavam as balas em vespas, mosquitos, abelhas, fogo. E ainda me lembro, N`tsai, da história intrigante que me contaste de um jovem que havia sido levado à força para o Serviço Militar Obrigatório. Chegado lá, no dia em que fora submetido aos exames médicos, ele, que tinha vinte e dois anos, chegou a pesar vinte e nove quilos. Mais tarde, longe do quartel e do militarismo compulsivo, confessou que a sua avô lhe tinha dado umas raízes para mastigar, que as mesmas tinham o poder de lhe tirar o peso real. Ilusionismo ou realidade?!

E falei-te do velho Guente, que era cego, mas que levava a sua vida tão normal como quem não tivesse problemas visuais. O povo, para se consolar, dizia que a cegueira do velho Guente não era normal, atribuindo-lhe, assim, uma sombra invisível ou um fantasma oculto, que lhe orientava o dia-a-dia.

Ainda a falar-se da magia, minha avó, a mãe do meu pai, morreu no minuto em que o marido (meu avô paterno) era sepultado. Segundo línguas populares, os dois tinham jurado “... vida e morte...” e não podiam deixar-se, senão partir juntos, para que não se traíssem nos seus segredos térreos. E há quem me assegurou que os seus espíritos, encarnados em pessoas ou animais, velam, até hoje, por nós, os filhos-netos-bisnetos-e-outros. E numa dessas vezes, a mesma avó Tchaçaça, antes de partir para a viagem irregressível, dissera: “Há pessoas que ouvem as suas vozes interiores com muita clareza, e há quem se dá ao cuidado de se orientar por elas. Essas pessoas, ao olhar da sociedade, ou são tidas de loucas ou tornam-se lendárias.” E hoje, querendo perceber o que ela queria me dizer, chego à conclusão de que essas vozes são os espíritos que velam por mim e pelos outros meus familiares e aconchegados.

Ainda no Jardim Tunduru, decidimos parar perto de um aquário contendo nenúfares. Sentaste-te nas minhas pernas. Era a primeira vez que o fazias, e fiquei gordo de orgulho por esse gesto. Das pernas, subiste um pouco e sentaste-te mais para cá acima, onde meu bicho entre as pernas começou a movimentar-se ao sabor da tua provocação.

Enquanto estávamos a conversar sobre os NADAS de duas pessoas que se desejam, voltaste à conversa sobre os mitos e o mundo tradicional africano. Despiste-te da ciência ocidental e contaste-me sobre a menstruação imparável de uma das tuas amigas. Fora a todos os hospitais e nada de anormal descobriram, até que um velho disponibilizou-se em usar os seus conhecimentos tradicionais ou alternativos, na linguagem ocidental, e curou a tua amiga. E eu falei-te também da história da esposa de um amigo meu, que tinha um amante malawiano. Esse amante, como forma de privatizar a mulher do outro e tê-la em regime de exclusividade, tratou-a de forma que, sempre que o marido quisesse fazer amor, ela se encontrava menstruada e com fortes cólicas.

Para além dessas histórias, falamos de muitas outras, em que a magia e o feitiço eram a nota predominante, e lembro-me que comungamos a ideia de que em cada parte do mundo, independentemente do grau da sua modernização-civilização, existem hábitos tradicionais e tabus, que não são perceptíveis à Ciência dita moderna.

Recorrendo ao meu pouco saber sobre as magias ao nível internacional, contei-te a história de um diplomata europeu que havia sido colocado na Indonésia. Lá, ele conheceu uma linda senhora, e essa, sentindo que a relação os conduzia para cantos passionais comprometedores, decidiu dizer a verdade sobre a sua vida ao pretendente: “sou viúva, e desde que o meu marido faleceu, nenhum homem conseguiu manter relações íntimas comigo. Sei o que queres, mas tenho medo que isso não nos leve para longe”.

Para o europeu, essa advertência não passava de uma autodefesa própria das mulheres e não prestou nenhuma importância à mesma. Decidido a levar a aventura à sério, no dia em que, ao sabor das circunstâncias, viram-se estendidos numa cama e com todos os ingredientes a favor do instante, no momento exacto em que o homem ia desnudar por completo a comparsa, uma voz estrondosa fez-se ouvir: “Não toques na minha mulher!!!”, e ao mesmo tempo, ele sentiu um soco tão forte nas suas costas, deixando-lhe imobilizado por muito tempo. Confessaria mais tarde que não sabe como é que saira do lugar e nem como é que chegou a casa, conduzindo.

- Isso aconteceu mesmo?

- Sim, aconteceu, na Indonésia - Ásia. E ainda mais: contaram-me também a história de uma casa, em que ninguém vivia, mas que em todas as noites, as luzes acendiam-se ao anoitecer e apagavam-se pela manhã.

- Acenderem-se e apagarem-se as luzes sem a intervenção do homem? Como interpretar isso?

- É simples. Na falta de explicações cientificas, recorre-se a uma outra ciência, essa que ainda não está registada, mas que é passada de geração em geração – a da magia negra ou outros nomes que se atribuem a esse conhecimento. Interpretações e explicações não podem faltar, mas a ciência dita universal ainda não tem ferramentas em dia para essa viagem de exploração do que é tido por manifestações obscurantistas.

Em seguida, olhaste para as horas.

– Já são vinte e dezoito. Deixa-me no meu Lar, que quero ir ver a Telenovela brasileira - “Saçaricando”.

– Essas novelas não deixam pessoas à-vontade para namorar!

Insististe em ir ver a Telenovela. Não sou muito fã das novelas actuais – que exibem sexo em demasia e de uma forma muito explicita, sem ter em conta os grupos etários dos espectadores e as horas em que as mesmas vão ao ar, mas como tu querias, eu não podia privar-te desse desejo-querença. Quando duas pessoas se amam, há que fazer esforço para compartilhar os gostos-sonhos, que é para não haver dissonâncias e desencontros de desejos. E aprendi de ti a gostar também das novelas. E desse gostar, ensinei-te que o mais importante não era a parte da apresentação de corpos andantes e fraseologia comercial, mas a histórica intrínseca de cada cena. Decidido a ver contigo a dita novela, em vez do teu Lar de Estudantes, fomos a casa de um dos meus amigos: Chanu. A casa estava cheia de gente, mas não faltaram dois lugares para nós. Não sei se notaste: quando entramos, todo aquele mundo, em vez de se concentrar na novela, estava a comer-te pelos olhos. Vontade não me faltava de gritar: “eih, deixem a minha cana-de-açúcar em paz!”, mas tive que me controlar.

Depois da casa do Chanu, fomos andando à deriva, à procura de algo que satisfizesse os nossos egos. Apoderei-me de metáforas mais líricas e, em plena rua, e à noite, gritei-te bem forte a minha paixão, o meu amor, amor louco. Mergulhamo-nos no mundo dos loucos. Inventei o discurso mais lírico que podia, e tu ficaste também louca pela minha loucura. Dois loucos compartilharam as mágoas, o sofrimento, a ternura, o mundo da dúvida e das emoções passionais. Sentamo-nos numas escadas de um prédio qualquer. Primeiro, foi lado a lado, e depois, tu te sentaste nas minhas pernas. A um impulso passional, comecei a apalpar-te. Para te defenderes, não sei de quê, estabeleceste regras bem rígidas, dividindo o teu corpo em quatro partes: (um) a cabeça, (dois) o tronco, que ia até à linha divisória da zona umbilical, (três) do umbigo até aos joelhos e (quatro) dos joelhos até aos pés. Eu estava permitido a brincar livremente com as partes um, dois e quatro. A terceira parte era-me veemente interdita. E mesmo na parte dois, proibiste-me de brincar com os teus seios-e-mamilos.

Não te levei a mal, que o facto de me permitires acariciar o teu nariz, linguajar os teus lábios, roçar as tuas orelhas, beijocar a tua boca, já era uma revolução para se celebrar.

A noite estava linda. Lindíssima, N’tsai. Ao som do vento dessa noite metaforizada, fomos até à praia da Costa do Sol. Não tínhamos medo de ninguém: dos polícias que gostam de exigir documentos a cidadãos honestos, deixando os de má-conduta imunes; e dos bandidos que, vezes, andam à solta à procura de crimes por praticar, sob o olhar impune e comprometedor dos que deviam velar pela lei e ordem.

Parados frente-a-frente, convidaste-me a olhar para as estrelas. Elas estavam bem brilhantes, com uma parte da lua escondida na cauda de uma nuvem. Quiseste que eu declamasse um poema, ao sabor do momento. Não me vieram nenhuns versos. É que aquele instante, N´tsai, mágico que era, não deixou o meu eu inspirar-se e produzir seja que versos fossem. Aquele instante, N´tsai, não era para poemas, palavras, sonhos, senão vivência in loco das emoções que se produziam ao sabor do marulhar das ondas, do brilho das estrelas, da eletricidade percorrendo nossos corpos sedentos um do outro.

Lá longe vinham uns polícias, patrulhando a zona. Para não sermos vistos por eles e sermos alvo de chantagem barata àquelas horas da noite, decidimos aplacar na área húmida, sem medo de nos sujarmos ou ser arrastados pelas ondas. Vendo que os policias já não estavam por perto, fomos andando em direcção à estrada, pegamos o caminho, e desaguamos, assim, no SELF. Olhaste para o relógio. Não acreditaste...

- Sabes que horas são? – perguntaste-me.

- Não.

- Vinte para às cinco da manhã.

- O quê?! Já amanheceu, quase... Vamos subir para o meu quarto!

- Não! Acompanha-me ao meu Lar. Não podemos incomodar o teu colega do quarto com as nossas loucuras. Sei que é teu-nosso amigo, mas fica mal chegarmos a essas horas e ...

- Mas ele...

- Sei, mas fica mal. Imagina que lhe encontremos mal coberto e com a pistola genital a mirar fora do bikini?!

- Tu e as tuas imaginações!

- E tu e as tuas loucuras! Não achas perigoso metermo-nos na cama, depois de termos activado as hormonas passionais?


*


Outro encontro? Combinamo-lo para terça-feira seguinte.

– Isso de nos encontramos com frequência, a gente acabará por se acostumar a ponto de...

– Não há outra coisa que gostaria tanto senão a nossa...

– A nossa o quê?

– Eu e tu no Nós, N’tsai; na nossa ilha imaginária. Eu e tu apegados como que unha e dedo.

– Fazes-me sentir a mulher mais querida-desejada do mundo, Saopa, e esses sentimentos de prazer-amor fortificam a minha convicção de que este amor pode fechar-me as portas da razão. A loucura passional não se compadece com a razão, meu bem, e eu ainda quero nadar no mar da razão, que é para não ficar cega por este amor pouco futurista.

– Tu me surpreendes, N’tsai!

– Tu é que me ensinaste a ter dúvidas, até de coisas boas e lógicas.

E separamo-nos nesse dia por volta das cinco horas da manhã.


Terça-feira. Telefonei-te para o número fixo do teu lar de estudantes. Da recepção, disseram-me que não te sentias bem e que não podias descer para atender a minha chamada. Vivias no Lar Santa Maria do Carmo, lá na Avenida Julius Nyerere. O tal Lar, lembro-me, foi transformado, agora, em um Hotel ou Restaurante, frequentado, na sua maioria, por estrangeiros do Ocidente. A lei das privatizações no meu país fez com que lojas se transformassem em bancos; bancos em mercearias; mercearias em salas de beleza; salas de beleza em bares; bares em farmácias; farmácias em discotecas; discotecas em escolas; escolas em casas de câmbios; casas de câmbios em lojas de conveniências; e por aí fora. Até há casas que se transformaram em Rest Houses, Restaurantezinhos, bares familiares, Escritórios Import-Export, Creches privados. A lei do dinheiro passou a ser a medida de todas as transações, mesmo de certas amizades-convívios: ricos com ricos; pobres com pobres. Em casos de um rico conviver com um pobre é porque existe uma razão-compromisso de elevada consideração. E sabes, N´tsai, a falarmos de transformações várias que aconteceram em Moçambique, aquele Bar, frente ao SELF, o BAR TICO-TICO, em que íamos almoçar, às vezes, a feijoada requintada e saborosa, sita na esquina entre as Avenidas Samuel Kankhoma e Amílcar Cabral, neste preciso momento em que te escrevo estas linhas, já está transformado em uma dependência de um Banco.

Voltando ao meu telefonema, quando uma voz masculina disse-me que não podias descer, desconfiei, confesso, que estivesses mesmo doente. Pedi a Katchiti para ligar para ti. Foi o mesmo homem quem atendeu, mas desta vez, ouvindo uma voz feminina, já não dissera que estavas a sentir-te mal. Chamou-te. Desceste e vieste ao encontro da chamada. Katchiti passou-me o auscultador. Falamos dos nossos sonhos, das nossas loucuras infindáveis. E naquele dia, descobriste que haviam, afinal, no teu lar, tipos mal-intencionados, que não queriam ver-te com rapazes que não fossem da tua escola-e-Lar residencial. E lembras-te das vezes que gritaste comigo, antes, dizendo que eu não tinha telefonado, só porque aqueles tipos não me deixavam falar contigo!? E mais do que isso, sabias, N´tsai, que no teu lar havia um tipo que estava gamado por ti? Era esse mesmo, segundo as minhas investigações, que subornava os guardas para que os mesmos mentissem a seu respeito, dizendo que não estavas enquanto estavas.

Na vida, há dessas pessoas que não se declaram e, em contrapartida, dificultam a existência dos outros aventureiros. Como diria a minha amiga Utchi, há tipos que não sabem fazer, mas que também não deixam os outros fazer. E esse teu colega pertencia a esse grupo de sabotadores.

O nosso amor foi-e-é uma história linda. E é do sabor desse amor pretérito que te escrevo-e-comunico-me contigo, pelos fios invisíveis, N’tsai.

Aqui onde estou, este amor invisível habita-me ainda a alma, a imaginação, a poesia toda, com uma intensidade fulminante.

Mas N’tsai, diga-me uma coisa: do teu ponto de vista, o que será amor? E o que foi o nosso amor?

Lembro-me da tua pequena viagem sobre este tema. E cito-te: “Amor. Como o definir? Como o explicar? Será a sensação mórbida que espicaça as entranhas dos que se fazem sujeitos do COMPASSO afectivo? Será a necessidade espiritual de se homiziar na carne sexual da eternidade, ou a interacção de dois desejos, num só?”

E eu acrescentei: “Amor. será que é a soma de um mais um para dar UM, na espiral-ou-horizontal?”

Florentino Dick Kassotche


In SEM TI (Recordações de uma paixão coagulada no fun-do-coração)

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